17.5.16

se alguém me levasse até ti eu ia
sem questionar nada
mas não posso não só por ter
quem me leve
não posso porque estamos num
processo de recuperação - estamos
a recuperar o que ganhámos e
perdemos, o que nos demos e
o que nos tirámos. o que tu
levaste quase sozinha meu amor.

22.4.16

leopardo

arrelio-me porque o jantar vem frio e são restos de há
dois dias mas, como tenho fome, não tenho a propriedade
de me queixar. levo o garfo ao prato e encho a boca
de arroz e de carne, os olhos revoltados, chorando,
tenho de me recordar dos meninos famintos morrendo
nos países de terceiro mundo. e engulo. engulo tudo.

6.4.16

este lado

espero que um dia uma lâmina
de vidro nos abra a cabeça
e todo o ruído deixe de
incomodar, de fazer ferida.
espero que um dia me perdoes.

30.3.16

a nível de trabalho ao fim-de-semana

dança com os mortos das fotografias, pergunta-lhes quantos
dias lhes durava uma onça de tabaco (30g), a que
cafés iam e com quem conversavam.
não é para todos, entender a linguagem dos mortos,
compreender o que responder; é necessário um grau
de loucura que quase toque no limiar da estupidez:
é necessária a idiotice. a barba e o cabelo dos
mortos é o que resta.
nem caroços da maçã do corpo, nem nada. quartos
vazios, estruturas do que foram camas, traças no
que outrora foram lençóis.
noutro texto disse
"nenhum morto sabe dizer 'lençóis', quando falares,
diz antes 'cobertas'."

28.3.16

English (United Kingdom)

cheira a óleo vegetal queimado em todas as divisões da casa
quando acabo de fritar batatas. tenho sereias na borda do
prato: redundâncias gigantescas, descomunais; espinhas, ossos,
nervuras. com a fome, acabam-se também os olhos dos peixes.
engulo tudo, um sémen de comida e água e vinho tinto. algures
um amigo atirando pombos do alto de um prédio. "a minha
poesia é melhor que a tua" num rolo na pata dos pombos, à
minha janela.
reconheço que sim.

soma

era uma quebra de linha
no silêncio
era um vestido num corredor
à noite num
filme da década
de cinquenta
com o Vincent Price.

27.3.16

junho

não é tempo para pés nem para pernas e não é tempo
para os outros (quem são os outros?)

tudo arde em itálico, no terraço, duas pessoas perguntam
coisas, uma responde; uma é hiperactiva, outra tem
dislexia, a terceira sofre de anorexia nervosa. todas
pensam em línguas dentro da boca, as línguas ocupam
demasiado espaço, dentro das cabeças, mais do que se
julga. mãos nos parapeitos, pés dentro de chinelos,
a língua dentro da boca, enjaulada nos dentes.

não é tempo para poesia nem para palavras, é tempo
para dormir.

14.2.16

?

vedo as janelas nos dias de tempestade
quando dizem no noticiário expressões como
"alerta vermelho"
mas nunca aprendi a vedar o coração
nunca vou aprender como

durmo como uma pedra que cai

caio como um pássaro que chora
e caminho como uma arma descarregada;
doo dentro das noites como uma arma que chora,
escorrego como um sono que cai.
falo como um húmus que cola as linhas do poema
anoiteço como uma costura que ama tudo
o que não devia. durmo como um peixe que
arde, sonho como uma mulher que sangra.

9.2.16

não é qualquer café que faculta pau de canela,
diz o rapaz de barba que me disse boa tarde.
e tem toda a razão, não é qualquer café que
faculta, não é qualquer pessoa que faculta, por
vezes ficamos sozinhos sem que tivéssemos escolhido
ficar sozinhos e ninguém faculta nunca nada

23.1.16

retroescavadora

sou uma flor vermelha e preta silenciosa de
amor deslocado. nunca penteei o cabelo, algumas
pessoas dizem-me que gostam dele assim.
não confio nas pessoas, não tomo por verdadeiras as
coisas que me dizem. a verdade é o tabaco a
fazer com que as engrenagens da minha alma
se movam, ainda que à custa da destruição
e da morte do corpo. sou uma flor pisada e
magoada de amor desperdiçado, vermelha e preta,
encarnada e negra; no meu sangue há
óleo e álcool, há corantes e conservantes,
há formaldeído e cianeto de hidrogénio.
sou eu quem fala, quem ri sozinho, doente, no
meio das mulheres nuas, na casa de putas;
sou eu quem grita, quem fecha a porta do
texto às palavras que, de flor, não têm
nada. vejo-me uma flor vermelha, preta, um
peixe prateado reflectindo relva e ar.

21.1.16

palma das mãos à noite

talvez apareça uma outra mulher em cuja luz consiga descobrir o
rosto, também destruída de tanto reconstruir o coração aos
arrastões, violentamente como um pombo batendo no vidro de um
carro. talvez um dia haja uma falésia, um precipício no lugar
da dor de cabeça e alguma casa possa assemelhar-se a um lar,
alguma cama abrigue sob a coberta as mãos que buscam.
haja sempre mãos que no baixo ventre busquem.

18.1.16

k

fui de encontro às colmeias e colhi cera e mel
e passei pelas garotas de dezasseis anos rente
ao rio, rindo e vergastando as pernas umas
das outras com vides secas (doem menos, as
vides secas). não tenho bocas para alimentar, em
casa, um pássaro, um peixe, bichos-de-conta
que às vezes nascem do soalho. nas colmeias
há abelhas desconcertadas com o fumo do tabaco,
fugindo, estrelas cadentes pretas e amarelas,
procurando no intervalo das vides as pernas das
raparigas de dezasseis anos.

20.12.15

não sei se és tu nas fotografias que
às vezes aparecem, que outras pessoas
me trazem sem querer

quem me dera que fosses
quem me dera que não fosses

não sei onde estás ou onde tocas mas
procuro-te na improbabilidade
das fotografias dos outros como
se ainda fôssemos alguma coisa
como se ainda pudéssemos ser
qualquer coisa.

13.12.15

electrónica

o relógio em dezembro à noite incessante mas lento
debaixo das escadas com o tempo todo para não fazer
nada a atirar pedras de carvão para dentro de vasos
sem terra a pensar nos incêndios que se atearam há
tantos meses a pensar na morte de pavões dentro de
contentores uns guinchos tristes de mamífero nos contentores
aves soando a mamíferos por causa das úlceras e da
morte
é tão mais fácil falar da morte tão mais simples tão mais
bonito no contexto poético da depressão que todos procuram
ler

a minha filha é livre de morrer abraçada a um pavão num
contentor de ser encontrada pelos homens às cinco da manhã
no meio de lingerie usada e jornais de há tantos meses

a minha filha nua
um copo de água
uma aspirina
o lado esquerdo
do corpo
todo
apanhado
debaixo das escadas com o tempo todo para não fazer
nada para além de atirar pedras de carvão contra os pavões
rir muito alto bater com as mãos nas paredes cantar
coisas de que já ninguém se lembra
inventar histórias às velhas e acreditar em todas as mentiras
que se dizem

a minha filha na água
com uma aspirina e os
pavões
chorando petróleo
guinchando
na solidão
no tempo
no lugar
no modo

9.12.15

cabo formado por uma elevada montanha

o café está queimado na língua e não
acalma nem abafa o sabor
do tabaco. é só café, só um modo
cansado de falar das coisas,
das feições da filha da
cigana tão iguais às
da filha da
outra. o café queimado reúne-nos
a todos, o tabaco,
a vida a ir para esta merda.

8.12.15

cattleya mossiae

j.

num lugar onde te lembres do pó que comemos
mas também das laranjas
a que chegavas a cheirar na escola e à conta
das quais os miúdos te apontavam e riam
sem que soubessem
pois ninguém sabia ainda
a música luminosa que te nasceria dos olhos
e das mãos e das palavras
ainda que hoje sejam ditas numa outra direcção

num lugar onde caminhes sozinha e já não te
veja nem reflectida nas costas de uma colher de
chá
e não me ouças por necessidade de esconder os
ouvidos à angústia

sempre num lugar onde o amor na água com os peixes
desorientados
e as minhas unhas arranhem areia no fundo do mar
em busca de laranjas ou de palavras que ainda cheguem
até ti mesmo que ténues
farrapos de uma voz animal
com que nos embalámos tantos dias dentro de tantos meses

olha as feridas abertas tão férteis contra os vidros
num lugar onde a memória não se apaga
uma estrela longínqua morta há milénios mas
cuja luz
ainda
até ao fim de parágrafo de um ser humano

3.12.15

quadrado #8: telefone

T.

lavo as mãos com a água mais fria que existe; és uma imagem distante,
um rio de sangue menstrual em cima da cabeça de uma boneca, no chão
de uma mata, tudo misturado com folhas e terra. vejo as tuas pernas
despidas ao longe, de trás, nas fotografias. vejo um cancro de luz
a destruir-me o tórax a partir de dentro, tenho fotografias com que o
atestar. a preto e branco.
lavo a fruta com a água mais fria que existe, levo-ta à boca com os dedos
mais gastos que tenho, podemos comungar isto, pelo menos: a menstruação
nas fotografias, os frutos, os cabelos, as pernas, as nádegas.
enxaguo as palavras no gelo da água; conto-as, estendo-as ao sol, seco-as
e só depois tas entrego, deito-as no teu colo esperando que importem,
que tudo isto sirva um desígnio, um propósito.
caminho no chão onde fotografaste a cabeça de uma boneca sobre as folhas,
ando sobre a memória do sangue menstrual, espero que alguma
estrada me leve até onde estejas; gasto todo o tabaco antes do tempo,
o tempo, o tabaco
deviam ser gastos onde as tuas mãos lavadas levassem à boca um copo
de leite sem lactose.

1.12.15

when the devil calls I'm gonna ride that train

quatro do onze, dezoito do onze, dezoito anos, dezoito buracos num
jogo de golfe, dois homens a ler poemas do William Carlos
Williams em voz alta, bêbados, que a poesia é para bêbados.
dezoito copos de aguardente, dezoito copos de bebedeira,
nenhum fígado.

10.11.15

lama

em nenhuma margem
de nenhum rio
escrevi palavras
como fiz nas margens
dos livros

em nenhuma margem
de algum mar